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1 de julho de 2008

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A derrota do rouba mas faz

por cila schulman

• Claro que não existe apenas um fator para explicar a derrota ou a vitória numa eleição. Evidentemente que no videotape todo mundo tem uma explicação, especialmente os que gostam de encontrar um culpado para a derrota. Mas às vezes a gente que é profissional e tem a experiência de muitas campanhas, é mesmo capaz de sentir claramente o momento do turning point de uma campanha, aquele em que os ventos mudam de rumo. E este que eu vou mostrar aqui foi um daqueles programas eleitorais que mudaram os rumos de uma campanha que tinha resultados previsíveis, invertendo o quadro para a derrota do grande favorito.

• Não vou citar nomes e até fiz um corte meio tosco no filme (todo o início) pra não identificar o local, pois os personagens estão todos aí de novo na campanha municipal de 2008. Mas vou contar o caso, que foi o seguinte: o candidato favorito tinha, no início da campanha, 60% de intenção de votos e uma enorme certeza de vitória no primeiro turno. Era um daqueles chamados coronéis políticos históricos, poderosos, para quem eu já havia inclusive trabalhado em outra ocasião, só que isso é outra história. Bem, do outro lado (por um acaso o nosso), havia uma rejeição de quase 80% ao candidato, resultado de um bem feito trabalho (do contra) na pré-campanha pelo favorito. Além destes dois, tinha apenas mais um candidato com espaço para crescer. Para piorar, a turma do nosso lado, que havia sido oposição ao candidato favorito a vida inteira, protagonizava pela primeira vez uma campanha majoritária, estreando com razoável poder de fogo. Em outras palavras: vontade grande de sangue e um arsenal de denúncias maior ainda.

• Foi diante desse quadro que a minha equipe de comunicação e eu desembarcamos lá às vésperas de colocar o programa eleitoral no ar. Nós chegamos e logo entendemos que precisávamos tentar baixar a nossa rejeição através de propostas, perfil, apoios, única chance de sair melhor do que entrávamos naquela eleição. Porém o que encontramos foi uma campanha ansiosa por colocar no ar o conteúdo de caixas e caixas de documentos que comprovavam atos de corrupção e desmandos do adversário. Eu entendia aquele desejo de “vingança”, mas que muitas vezes era contraproducente, isso era.

• Chegou setembro e nada do quadro se modificar. Ao contrário: cada vez que batia, o nosso candidato virava candidato à maior rejeição da história eleitoral do país, mesmo sendo uma pessoa doce, correta e bem intencionada. Quanto ao adversário, vou abrir aqui um parêntese pra ele porque ele fazia uns programas inacreditáveis. Adoraria ter ficado com a cópia de pelo menos um deles, pois tinham uma lógica e um enredo totalmente diferentes de tudo o que eu já vi até hoje e eram extremamente eficientes.

• Era mais ou menos assim: ele entrava num cenário de “Aqui e Agora”, com postura de apresentador e não de candidato. Aí começava a contar a história de um personagem, cortava para a dramatização da cena, depois voltava pra ele, que se emocionava, às vezes chorava e enfim apresentava a solução para todos os males da sociedade: um tal centro de atenção à família, se bem me recordo do nome, que se materializava em uma sofisticada computação gráfica. O discurso, sem ir aqui nenhum julgamento de fé, era o das comunidades evangélicas, com força para a salvação na moral e na família. E tudo isso era mostrado em formato de novelinha, cada dia entrava um novo personagem com um novo problema e com a consequente solução: o centro de atenção à família.

• Assim, por semanas vimos passar no programa do TRE todo tipo de desgraça cujo nó seria desatado através de algum equipamento acoplado à computação gráfica inicial. No final, acho que já tinha delegacia, escola, banco de empregos, creche, posto de saúde, psicóloga, socióloga, centro de cultura, sala de reunião comunitária, tudo concentrado no tal centro de convivência (de integração? de assistência? juro que não lembro) da família. Haja terreno, mas quem é que se preocupa com isso?

• O personagem que mais fez sucesso (pelo menos o que eu mais gostei) foi um rapaz alcoólatra. Não lembro de todos os detalhes, mas sei que ele acordava num quarto humilde e ia direto pro bar, onde entornava uma meia dúzia de doses de cachaça em jejum. Aí ele voltava pra casa trançando as pernas (com close na calçada e nos pés) ao som de uma trilha de medo e uma narração que adiantava o desastre que estava por vir: ele quebrava tudo, batia na mulher, acho que também nos filhos. Era uma tristezada. Finalmente, aparecia o salvador (o candidato, ele mesmo!) e o moço era levado pro centro de integração da família, atendido por uma psicóloga, encaminhado para um posto de trabalho e transformado em um chefe de família exemplar, vivendo feliz para sempre. Tudo isso dramatizado com todos os detalhes, é sério!

• Se você pensa que eu estou criticando a equipe da campanha ou o próprio candidato, saiba logo que não é nada disso. Estou aqui apenas relatando cenas de eleições, que somadas a outras histórias de eleições e de alguns toques mais acadêmicos que pretendo indicar aqui, vão desaguar num somatório de experiências que poderão ser úteis a quem se interessa pelo assunto. Só isso.

• O fato é que o adversário ficava cada vez mais poderoso e mais paizão, falando a língua do povo, e nós, os outros, sem muita brecha pra projetar algum sonho possível pro povo sofrido daquela cidade. O nosso companheiro terceiro candidato (que já havia sido candidato antes, tinha boa formação, bons projetos, cara boa) fazia uma campanha direita, ancorada num personagem político que era o arauto da honestidade, mas ainda assim a coisa não andava no ritmo necessário para inverter o quadro.

• Foi aí que deu-se o inusitado: a uma certa altura tive que fazer uma troca emergencial na equipe, coisa normal em campanha. E foi reexaminando os números de pesquisa de opinião pública com o novo integrante do time (o grande e experiente estrategista e redator baiano Eduardo Saphira) que caiu a ficha: se 61% das pessoas diziam que conheciam bem o candidato (índice bastante alto em se tratando de políticos), se 79% concordavam com a afirmação “ele rouba, mas faz” e se a maioria queria votar nele, não adiantava contar “os podres” dele e sim adotar outro caminho.

• Naquela mesma noite o Saphira (que entre todos os seus talentos ainda tinha anos de ACM) fez o tal texto que ocupou quase todo o nosso programa, com edição caprichada do Guto, direção do competente Marcelo Luna e trilha + locução da In Sonoris, e que mudou o rumo daquelas eleições. O resultado foi que ficamos praticamente sem programa até o final da campanha, pois mesmo sem a gente falar uma única vez o nome do adversário, ele vestiu a carapuça e correu pro TRE pedindo direito de resposta. A coisa pegou. Uma chamada de consciência era o que faltava para os eleitores. “Se ele rouba, por que mesmo é que eu vou votar nele?”.

• Vieram os debates e o favorito se deu mal, havia sentido o golpe, não tinha mais tanta segurança. Resumo é que o outro candidato (o terceiro) foi subindo, o nosso também subiu um tanto, o favorito caiu um tanto, foi para o segundo turno e… perdeu. Uma pena que a nossa campanha não tenha cumprido com alguns combinados e acabou jogando todo esse esforço fora nos anos seguintes. Mas isso é outro assunto, não vem ao caso aqui.

• Enfim, conto essa história pra dizer que não adianta só ter dados e olhar uma pesquisa de intenção de votos friamente. É preciso encontrar a brecha pra falar com as pessoas de um jeito que as sensibilize e isso nunca, ou muito raramente, aparece em pesquisa, nem mesmo nas qualitativas. Isso vem unicamente da experiência e do talento da equipe. E também não adianta ficar repetindo, nos comerciais do contra, o que todo mundo já sabe e assim mesmo tem uma preferência, certo? Por isso acho esse programa um bom exemplo, pois com ele trouxemos um elemento novo para o jogo e fizemos o que chamamos de um shortcut, um atalho, raciocinamos junto e para o eleitor, função maior da comunicação de uma campanha.

• Ah, está aqui o filme. Como já disse, cortei todo o início e perdi um tanto do raciocínio, do ritmo e da emoção (espero que você me perdoe, mas é melhor assim, acredite). Só pra você entender, começava com um texto questionando o que as pessoas pensam quando vão para as urnas: nas propostas, no caráter do candidato… e a questão da corrupção, como é que fica? Fomos às ruas da cidade e as pessoas, umas atrás das outras, diziam que iam votar no candidato “rouba mas faz” porque ele era o único, porque ele tinha feito muita coisa pela gente miserável da cidade, porque todo político rouba e uma série de outras sonoras em que as elas assumiam a sua opção apesar da questão da honestidade. Depois o texto dava uma virada para entrevistados que não pensavam desta forma (aí é que começa a edição aqui).

1 Comentário Comente
  1. Mara
    jul 1 2008

    Cila, a partir daí, a oposição começou a usar conceitos como “quem rouba não faz” ou “quem rouba deixou de fazer”. Mostrava cenas que lembravam as mazelas do povo e dizia que os problemas chegaram àquele ponto pq os recursos que deveriam ter sido investidos ali foram roubados. E o “favorito” foi caindo, caindo… Foi bacana! Bjo.

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